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As Corinthianas
A carta de uma torcedora especial para o seu grande timão
Guarulhos é uma cidade vizinha à capital de São Paulo. A verdade é que ela pode passar despercebida aos olhos dos turistas que embarcam e desembarcam no aeroporto todo dia. O que é uma pena. Eles nunca vão saber o que é comer churros no Bosque Maia, assistir uma apresentação no Teatro Adamastor, ou passar o dia no parque de diversões do Shopping Internacional. Pior ainda, todos os dias, milhares de turistas perdem, por um acaso, a confusão dos encontros da família Melo.
Como todas as famílias, ela tem suas próprias regras. Lá, todos tem nome composto, bebem cerveja da marca Brahma, amam incondicionalmente um sambinha e comem a ceia de Natal antes da meia-noite. Ah, e claro, todas as mulheres são Corinthianas. Para muitos, o futebol é um ambiente masculino, um lugar de agressividade, uma “brincadeira de menino”. Para as Corinthianas, o futebol é o que reúne a família em almoços elaborados quando acontece a final de algum grande campeonato.

Reprodução: Pinterest
A história do Corinthians começa em 1° de setembro de 1910, quando quatro operários fundam o chamado “time do povo”. Para a família Melo, a história começa quando a matriarca, Tereza, nasce em 1954, filha de uma mineira que se mudou para a selva de pedra e criou sozinha Tereza e seus seis irmãos, dentre eles apenas um palmeirense e um são paulino.
Em 1973, o Corinthians faz uma campanha discreta e fica em quarto lugar no campeonato paulista e em décimo segundo lugar no Brasileirão. No mesmo, nasce Melissa Cristina (Teixeira de Melo), a primeira filha de Tereza e seu marido Gilberto, uma leonina nada discreta. Em 1976, ocorre a famosa Invasão Corinthiana, onde mais de 80 mil corinthianos viajam até o Rio de Janeiro.
Nesse ano, nasce a segunda filha do casal, Mônica Regina (Teixeira de Melo), que no espírito corinthiano desconhece os limites de até onde vai a coragem e dedicação de alguém, e talvez por isso, ela tenha se tornado professora. E em 1993, Melissa tem sua primeira filha, Brenda Sophia (Araújo, mas que é tão Melo quanto as outras), e copiando seu sobrenome, o Corinthians resolve ficar fora das decisões de qualquer campeonato.
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Para as filhas de Tereza, ser Corinthiana é algo que não tem um início. Aconteceu muito antes delas, e se tornou parte de sua infância, quase como aprender o ABC. “A única memória que eu tenho é que eu sempre fui Corinthiana. E não me lembro de alguém me obrigar a torcer para o Corinthians. Eu acho que foi uma coisa natural. É uma lembrança muito boa que eu tenho, e que sempre esteve no meu coração. É uma coisa que não tem nem como explicar”, conta a filha mais nova.
Para Melissa, o Corinthians é um reflexo da sua família: “Eu nasci numa família de mulheres Corinthianas. Mulheres fortes, mulheres pretas e Corinthianas”. A mais velha ainda relembra suas memórias de infância, quando sua avó era madrinha do time de futebol de várzea onde os tios jogavam. “Ela colocava eu e minha irmã na caçamba do caminhão junto com os meus tios. E aquilo era uma alegria muito grande, a gente se divertia muito”, comenta. E ainda relembra que, embora seus tios jogassem em um time, eram em sua maioria corinthianos, e por isso cantavam sempre o Hino do Timão.

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Desde então, as duas viveram momentos muito marcantes com o Corinthians. Mônica destaca o Mundial de 2012, que levou mais de 30 mil corinthianos ao Japão. Mas, nossas Corinthianas permaneceram em Guarulhos. Afinal, melhor do que ver seu time campeão, é assistir com a sua própria panelinha de mulheres que torcem para o time do povo.
Mônica relembra o 16 de dezembro como um dia que passou com sua sobrinha. “No meu coração eu não acreditava, mas a hora que se concretizou foi uma emoção muito grande.” Mônica tem uma filha de 19 anos que prefere se manter em anonimato (por enquanto), mas que conta que foi nesse dia, enquanto sua mãe dizia que aquela festa toda significava que o Corinthians era o melhor time do mundo, que ela decidiu que se juntaria ao legado das Corinthianas.
Brenda, no entanto, prefere destacar um dia diferente do de sua tia. Ela e sua mãe foram umas das poucas integrantes da família a realizar o sonho de ver o Coringão jogando no Pacaembu. Brenda relembra perfeitamente os detalhes: Era 2009, ela tinha 16 anos, e o Corinthians competia contra o Ituano no Campeonato Paulista. O placar final também foi inesquecível, até porque o sonho de todo torcedor paulista é ter a sorte de logo na sua primeira vez no Pacaembu ver o time finalizar o jogo ganhando de 3x0.
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Sobre ser mulher e torcedora do Corinthians, as integrantes da família Melo tem significados diferentes. Mônica destaca que ser Corinthiana envolve apoiar a escola de samba da Gaviões, as manifestações, o lazer e tudo que envolva o time. Para ela, é importante se posicionar politicamente, afinal, estamos falando do time da Democracia Corinthiana. “É algo que só quem é Corinthiana vai entender. O Corinthians não é só um time de futebol, é uma lição de vida.”
Para Melissa, ser Corinthiana é ser uma potência. “Me sinto praticamente foda quando eu falo ‘Eu sou uma mulher Corinthiana’.” Ela ressalta que o time é uma surpresa, mas que, entre derrotas e vitórias, fazer parte da torcida é estar ali independente do resultado. E para Brenda, ser parte de todo esse legado é o que ela planeja dar continuidade com sua filha de seis anos. “Ser uma mulher Corinthiana é viver a intensidade de um amor que transcende o futebol. É perpetuar o legado de mulheres Corinthianas que vieram antes de mim.”
Em 2019, o Timão voltou a ser tricampeão paulista após 80 anos, e a família Melo ganhou mais uma integrante feminina após 14 anos. Maya Araújo não tem “Melo” e nem nome composto, mas não deixa de ter uma história de mulheres fortes para seguir. Infelizmente, 2019 também é o ano em que a família Melo perde sua matriarca. Tereza Salgado faleceu em agosto daquele ano vítima de um colangiocarcinoma, doença cancerígena que afeta o fígado.
Mas claro, esse não é o fim da nossa história das mulheres Corinthianas. Afinal, se Tereza deixou algum ensinamento para as filhas e netas, é que a felicidade às vezes está em acompanhar um jogo do Todo Poderoso com um churrasquinho e uma caneca de cerveja sempre cheia e geladinha.
A verdade é que o Timão já está quase tão entrelaçado na família quanto os próprios familiares. Ser Corinthiana é uma escolha, mas na família Melo, é uma escolha condicionada pelas histórias engraçadas sobre sua avó, pelo medo da sua mãe de ter um genro palmeirense, pelo “vamos combinar de ir na Arena” que quase nunca acontece e pelas várias formas em que o Corinthians acontece no dia a dia quase como algo imperceptível, mas sagrado. E tem algo mais característico do time do povo?
Ser Corinthiana é sentir o Corinthians em sua forma mais pura, porque ser mulher é nascer carregando os ideais do time da democracia desde o berço. Ser mulher é uma luta diária, ser mulher é resistência e as várias formas de ser tornar uma mulher, à la Simone de Beauvoir, é uma tradição que é passada por gerações.
Ser Corinthians é tão forte que eu não poderia deixar de me emocionar ao escrever essa matéria, porque sendo Marcela Elis de Melo, neta de Tereza, ah Doutor, eu não me engano: meu coração é corinthiano. 🤍🖤

Arquivo Pessoal

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